Os textos desenvolvidos pelo pintor Paul Klee no período em que lecionou na Escola
Bauhaus permanecem como referências fundamentais para o pensamento sobre a pintura.
Suas reflexões, notas e esquemas destinados ao ensino, reunidos no pequeno volume
intitulado Theorie de l’art Moderne (Genéve: Gonthier, 1971), nos oferecem uma
perspectiva crítica sobre diversos pré-conceitos, distorções e convenções relacionados ao
processo de criação que se perpetuaram durante o modernismo e permanecem até os
nossos dias mal compreendidos.
O capítulo “Filosofia da criação”, em especial, assume uma posição contrária às
concepções usuais que compreendem o “fazer” artístico como uma “técnica”. O texto
adquire relevo, pois reflete de maneira concisa a posição diferenciada de Klee frente ao
processo de criação. Sua perspectiva se choca com a crença na atividade artística como um
domínio técnico que “expressa” uma “idéia criativa”. Tal crença, que vigora ainda hoje
como um pressuposto, é tida como uma verdade tão corriqueira que qualquer reflexão a
seu respeito é considerada desnecessária. A naturalidade com que se pensa a criação como
elaboração de uma idéia original formada na mente do pintor, idéia preexistente, pronta e
acabada, desvinculada do corpo da linguagem que apenas a expressaria e desvinculada do
fazer, relegado a mero “meio de expressão”, oculta, entretanto, uma ideologia estética
comprometida com determinados conceitos, posições e pressuposições que o pensamento
de Klee nos convida a rever.
A metodologia adotada nesta “tradução comentada” foi, a princípio, expor o texto
original na íntegra a fim de não interromper a seqüência de idéias do autor. Os
comentários que se seguem à tradução tentam esclarecer os pontos mais obscuros do texto
e limpar o terreno dos preconceitos e interpretações tradicionais, que abafam a palavra do
pintor e a reduzem a uma mera opinião particular. Nos interessa particularmente verificar
o sentido amplo das idéias propostas e, sobretudo, sua perspectiva distinta. Portanto, mais
do que estabelecer uma interpretação precisa, buscou-se dar vazão ao livre pensamento,
CAPÍTULO ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS CORES TRADUÇÃO ILUSTRADA: MARCELO DUPRAT 2003 1PAUL KLEE – ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS CORES 1- O claro-escuro desdobra seu movimento alternativo de “subidas e descidas” entre os pólos do branco e do preto. O branco é a luz em si. Por ora não há a menor resistência e o conjunto está privado de movimento, sem vida alguma. Teremos que recorrer, por tanto, ao preto e incitá-lo ao combate. Combater a onipotência amorfa da luz. Do mesmo modo, e na mesma medida, nos afeta a impotência amorfa de uma superfície preta na qual a luz não envia seus raios (estes podem ser mais vigorosos ou mais débeis que o preto). Neste caso nos aliamos a luz e nos valemos da energia branca. O dinamismo ótico descansa em uma progressão ou em uma digressão relativa a quantidade e qualidade da energia sucessivamente desprendida. Trata-se de obter um movimento visível de fluxo e refluxo mediante a luta entre o claro e o escuro, que implica em um enérgico recurso dos extremos. A força do torneio supõe, por sinal, que os pólos opostos – branco e preto – afirmam sua presença; dão toda sua tensão ao jogo das forças que contrastam na escala dos matizes tonais. O movimento do claro ao escuro e do escuro ao claro; subindo e descendo com a variação do tempo. O branco é o estado dado; o agente (temporal) é o preto, e o inverso. A ação deve ser a exceção e não a regra. A ação deve destaca-se sobre o fundo de um estado dado. Se desejo operar sobre com tons claros, o estado dado deverá constituir um fundo escuro. Se desejo operar em profundidade, suponho imediatamente estados em tons claros. 2O efeito da ação se acentua graças a uma forte intensidade em uma extensão pequena, mas também em virtude de uma intensidade menor em uma grande extensão. Jamais abandonar a extensão principal do estado dado. Sobre o fundo de um estado tonal médio é possível uma dupla ação, no sentido do claro e do escuro. O movimento completo do branco ao preto dá uma idéia da distância gigantesca entre os dois pólos; o trajeto abarca todas as etapas da fonte do visível aos últimos confins do visível, ou a luta aberta dos extremos que se entrechocam. Uma grande amplitude do movimento pendular do preto ao branco dá força a ação. Uma amplitude menor indica uma diminuição do raio do movimento pendular. Os contrastes se atenuam.Dimensão tonal: a dimensão “acima - abaixo” é o lugar onde começa o esclarecimento. Muito acima o sol-luz; muito abaixo a noite. Dimensão calórica (cor). A dimensão “direita – esquerda” é o local do princípio de temperatura. A direita o sol-calor; na esquerda o frio. Se a dimensão tonal acrescenta a si uma ação cromática, nosso esquema se enriquece com a dimensão dos contrastes de temperatura. A conjugação das duas dimensões concede também duas dimensões ao movimento e contra-movimento. Ademais, progressão e digressão, na combinação, fazem entrar em jogo a dimensão “adiante – atrás”. O conjunto nos faz pensar em um pião feito com um fio de prumo e umdisco. Seu equilíbrio tridimensional, espacial, resulta da coordenação dos movimentos do disco e do eixo. O fenômeno do contraste de temperatura é facilmente percebido com materialdidático: uma esfera cromática que gire a uma velocidade média em torno de seu eixo “preto – branco”. Este modelo dá uma idéia da síntese de iluminação e temperatura. O cinturão formado pelas cores do espectro é, de algum modo, o equador. Os pontos preto e branco são os pólos. O ponto cinza (dentro da esfera) é eqüidistante dos cinco elementos fundamentais: branco, azul, amarelo, vermelho e preto. Tal é o cânon da totalidade. 3As cores se encontram no plano “esquerda-direita” – “adiante-atrás”. A circunferência é o lugar de sua maior pureza, e as relações cromáticas mais puras são, portanto, periféricas. O equilíbrio espacial, em toda a sua viva riqueza, indica uma vigorosa e prevenida tomada de posição no domínio inteiro das cores e tonalidades. A forma mais reduzida de equilíbrio total é representada pelo cinza, harmonia sem vida. II- Trata-se de estabelecer uma caixa (conjunto) ideal de cores, de definir uma disposição em que se possa justificar o local da cada cor. Trata-se de confeccionar um conjunto útil. A natureza abunda de impressões colorísticas. Os vegetais, os animais, os minerais, a composição que chamamos paisagem; tudo excita nosso pensamento e nosso reconhecimento. Mais por sobre todas estas coisas existe um fenômeno puro de toda aplicação, elaboração e alteração, um fenômeno em que sua pureza cromática lhe vale, neste sentido, o epíteto de abstrato: o arco íris. É significativo que este caso único de uma escala natural de cores puras não seja plenamente deste mundo e apareça ao nível da atmosfera. Permanecendo no domínio intermediário entre a terra e o universo, este fenômeno alcança certo grau de perfeição, mas não no grau último, já que só parcialmente pertence ao “mais além”. Mas também nosso poder criador se encontra, considerando a imperfeição do fenômeno, em condições de obter, pelo menos, uma síntese do ser. Há que supor que o que nos chega como uma aparência defeituosa existe em algum lugar na plenitude do seu ser. Em que consiste a insuficiência do arco íris? Comprovamos nele uma serie de sete cores: vermelho-violeta, vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, azul-violeta (índico). Todos sabemos que o verde, o 4laranja e o violeta ocupam uma hierarquia distinta do vermelho, do amarelo e do azul; mas porque há então o vermelho-violeta e o azul-violeta no arco íris? Observaremos – fato capital – que as cores do arco íris se apresentam de uma maneira linear: um ponto amarelo, um ponto verde, um ponto azul, etc... Põem-se em marcha um ao lado do outro. E se ampliarmos o arco íris para fazer dele algo que seja completo, não obteremos a superfície (ativa) de um circulo cromático, mas tão somente sete linhas circulares colorísticas, sete anéis encaixados uns nos outros. Representação linear das cores, o arco íris é assim uma representação insuficiente. Não nos ensina grande coisa a seu respeito, e nada ensina das relações das cores entre si. Alem de sua linearidade, seu principal defeito é seu caráter finito, não suficiente, atem-se ao campo intermediário entre a terra e o cosmos infinito. A discordância dos dois violetas aguça a curiosidade dos cientistas, que pressentem alguma coisa insólita em ambas as extremidades da série (infravermelho e ultravioleta?). Mas para nós os dois violetas são somente duas semi-cores: ambas metades devem compor um todo, os dois violetas devem fazer um só, e os dois misteriosos extremos da cadeia devem se soldar em um circuito infinito, vale dizer, sem começo nem fim. Já não há necessidade de efetuar um movimento pendular de 1 a 7 e – o contra-movimento oficial do infinito – de 7 a 1, buscando por aqui e por ali, indo e vindo. 1 coincide com 7, e simplesmente chamamos violeta o seu lugar de reunião. Saímos do campo humano, supra-animal, patético, campo de luta e de almacorpo, campo intermediário, semi-estático, semi-dinâmico, com o símbolo do triangulo, no qual as cores puras se sentem só parcialmente em sua casa. Sua disposição sobrenatural, cósmica, encontra nele sua adequada representação. O arco íris, manifestação natural da ordem das cores puras, não era mais que um reflexo de uma totalidade antes desconhecida, a totalidade cósmica 5das cores da qual confeccionamos um microcosmo sintético conforme o grande Todo. O círculo cromático está diante de nós. Não podemos aqui nos deter a meditar sobre a cisão do violeta do arco íris, sobre a brecha aberta por essa força inversa que humaniza as coisas divinas ao deformá-las para manifestá-las: tragédia do divino. Tudo ocorre, por sinal, como se o círculo houvesse sido vítima de uma agressão na colocação do violeta, desgarrando-se então do círculo, abrindo-se em dois ramos para produzir – série de pontos colorísticos que avançam uns do lado dos outros – o arco íris. Considerando-se detidamente o círculo cromático – reconquista sintética da ordem divina das cores – nos maravilhamos ao ver que recursos apresenta esta nova forma para ilustrarmos as relações das cores entre si. Antes de mais nada, os enigmas da série finita se vêem resolvidos, isto é, deixam de se estabelecer. O novo movimento se relaciona, em conformidade comuma continuidade sem fim, com o contorno do círculo. O chamaremos, então, de escala periférica das cores. O outro aspecto da novidade reside nos três diâmetros, que permite voltar a vincular as seis cores e agrupá-las, articulando três casais. Temos, portanto, por umlado, um movimento sobre a circunferência e, por outro, escalas diametrais de cores. Estes movimentos diametrais vão e vem do vermelho ao verde, do amarelo ao violeta e do azul ao laranja. Além disso, os três diâmetros se recortam em um ponto (o centro do círculo cromático). Tão notáveis propriedades sugerem umsentido profundo, que aparece na raiz destas duas experiências. 1. O efeito deixado na retina por um vermelho bruscamente retirado depois de uma prolongada exposição não é vermelho, mas verde. E se a vista se detémprolongadamente sobre um verde, o efeito deixado nas mesmas condições será a súbita emergência de um vermelho. A mesma bruxaria preside na alteração do amarelo e do violeta, do azul e do laranja. Todos podemos comprovar empiricamente, desta maneira, a lei dos complementares e a existência de três pares de cores. 62. A segunda experiência consiste em dividir um pedaço de papel em sete partes obtidas por camadas de tintas transparentes que partem, alternadamente, do vermelho puro ao verde puro. Movimentos e contramovimentos. Ao fazer isto aparece um centro, o cinza central (compartimento 4). Verificamos de maneira experimental que o vermelho e o verde se atenuam ao se aproximarem um do outro, para se neutralizar em vermelho – verde – cinza ao centro, mesmo que a cor ressuscite a cada lado ao se intensificar. Não utilizamos cinza, e, entretanto, o que aparece quando as cores se mesclam em quantidades iguais é o cinza puro. Em resumo: 1. Duas cores complementares se misturam alternativamente no olho. 2. Entre elas se encontra o cinza. A reciprocidade ou a alteração da escala vermelho – verde nos leva de volta ao pêndulo em seu caráter de movimento e contramovimento1 ,Lembra, também .uma balança móvel que termina por se imobilizar na interseção cinza. Coisa que de nenhum modo significa que o vermelho e o verde se prestem a uma representação estática, com todo o vermelho a esquerda e todo o verde a direita. Semelhante representação não sugeriria sua alteração simultânea, pois então seria necessário passar rapidamente de um termo a outro (construção). Junto aos três diâmetros mencionado existe, naturalmente, toda uma multidão de outros diâmetros. Os três principais se distinguem, não pela exatidão, mas por sua fundamental importância. A menor rotação de diâmetro em torno do ponto fixo respondem novos pares igualmente “legítimos”, mas menos importantes. Na busca de novos pares de complementares, a simultaneidade do movimento e do contramovimento evolui pouco a pouco em movimento perpétuo. Chegamos as relações periféricas, nas quais o movimento sem fim anula a direção da flecha já questionada pela simultaneidade do movimento e do contramovimento. 7O movimento circular mútuo das flechas é o símbolo de um equilíbrio que resulta da união do movimento com o contramovimento (movimento de um par para os pólos). Ao contrário da oscilação pendular que segue os diâmetro, o movimento da circunferência do círculo cromático é um perpétuo móvel. O movimento diametral só consegue sobrepujar as limitações da direção ao se interromper para se transformar em vai e vem, de modo que o movimento interrompido se situa por cima dos problemas de direção, de sentido. Este relógio de pêndulo também pode andar em sentido inverso. Não há fins em seu circuito, nem acoplamentos, somente uma contínua sucessão de passos. Esta corrente contínua ignora as interrupções; nela todo começo é ao mesmo tempo um fim. KLEE, Paul. Theorie de l'art Moderne. Genéve: Gonthier, 1971. 1O pêndulo é o símbolo da mediação entre estática e dinâmica, entre o peso (força concêntrica) e o impulso centrifugo (força excêntrica), entre a imobilidade e o movimento. Se a força motriz desaparece, a força da gravidade recupera seus direitos. O pêndulo é o símbolo da unidade do tempo. PAUL KLEE - FILOSOFIA DA CRIAÇÃOI- A força criadora escapa a toda denominação; segue sendo, em última instância, um mistério indizível. Mas não um mistério inacessível, incapaz de nos comover até as entranhas. Nós mesmos estamos impregnados desta força até o último átomo da medula. Não podemos dizer o que é, mas podemos nos aproximar de sua fonte em uma medida variável. Necessitamos de algum modo revelá-la, manifestá-la em suas funções tal como se patentiza em nós. Provavelmente também ela é matéria, uma forma de matéria não perceptível pelos mesmos sentidos que percebem os outros tipos de matéria. Mas é necessário que se permita seu reconhecimento na matéria conhecida. Incorporada a ela, deve funcionar. Unida à matéria, deve tomar corpo, converter-se em forma, em realidade. II- A gênese como movimento formal constitui o essencial da obra. Ao princípio, o motivo, inserção de energia, esperma. Obras como produção da forma em sentido material: originalmente feminino. Obras como determinação espermática da forma: originalmente masculino (coloco meu desenho no campo masculino). Há, a este respeito, que circunscrever o domínio dos meios plásticos em sentido ideal e dar prova da maior economia em seu emprego. Nesta a ordem do espírito se afirma melhor que na abundância de meios. Evitar o emprego maciço de dados materiais (madeira, metal, vidro etc...) em benefício dos dados ideais (linha, tom e cor, que não são coisas tangíveis). Desde logo, os meios ideais não estão desprovidos de matéria; senão, não poderíamos “escrever”. Quando escrevo com tinta a palavra vinho, esta não representa o papel principal, somente permite a fixação da idéia de vinho. A tinta contribui deste modo para assegurar-nos permanentemente vinho. Escrever e desenhar são, no fundo, idênticos. 2A produção (geração) da forma se vê energicamente atenuada em relação à determinação (concepção) da forma. Última conseqüência destas duas espécies (causa eficiente e causa material) da formação é a forma. Dos caminhos à finalidade. Do que se faz ao perfeito. Da vida a instituição. A forma em sentido vivo (Gestalt) é uma forma com funções subjacentes; em alguma medida é uma função de funções. Ao começo, a masculina propriedade da sacudida enérgica. Em seguida, o crescimento carnal do óvulo. Ou melhor; o relâmpago fulgurante, e logo a vaporosa nuvem. E onde está mais seguro o espírito? No começo. III- Desde o ponto de vista cósmico, o movimento é, naturalmente, um dado prévio e absoluto e não requer, em sua condição de força infinita, nenhuma particular sacudida enérgica. A inércia das coisas na esfera terrestre não é mais do que o bloqueio material do dado dinâmico fundamental. Tomar esta fixidez por norma é uma farsa. A obra é em primeiro lugar, gênese, e sua história pode representar-se brevemente como uma fagulha que brota misteriosamente não sabemos de onde, que inflama o espírito, aciona a mão e, ao transmitir-se como movimento a matéria, converte-se em obra. Palavras como “excitado” e “provocado” dizem tudo a este respeito. A noção de provocação designa a pré-história do Ato Criador, as implicações “pré-históricas” do fiat cosmogerador, a vinculação do Começo com o temporal, com o “atrás”. A possibilidade que tem o sentimento de superar um começo está contida, por sua vez, na noção de infinito, que prolonga àquele “adiante”. O conceito de infinito não só se relaciona com o Começo, mas ainda vincula este ao Fim e nos leva as noções de ciclo e circulação. A circularidade com o movimento como norma, que elimina o problema do começo. E então alguém, também tomado pelo movimento normal, sente despertar em si uma disposição criadora. Se sente mobilizado e mobiliza por sua vez. As principais etapas do todo do trajeto criador são deste modo: o movimento prévio em nos mesmos, o movimento atuante, operante, voltado para a obra, e por fim ao demais, aos espectadores, o movimento consignado na obra. Pré-criação, criação e re-criação. IV- Ao deixar desta maneira que se desenvolva pouco a pouco uma obra muito simples, primitiva, nos foi dado poder verificar mais de perto duas coisas importantes: antes de tudo, o fenômeno da formação; da formação em sua dupla relação com o desencadeamento inicial e com as condições de vida, da formação como desprendimento do misterioso impulso até à adequação à finalidade visada. O fenômeno já era perceptível em seu mais rudimentar começo, quando a forma começava a se constituir minimamente (estrutura). A fundamental relação da formação com a forma conserva, uma vez considerado o plano estrutural (“celular”), toda sua 3significação nos posteriores estágios, precisamente porque se há reconhecido nela um princípio. Esta significação pode enunciar-se assim: a marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por alguma necessidade interior ou exterior, prevalece sobre o fim terminal, sobre o final do trajeto. A orientação determina o caráter da obra consumada. A formação determina a forma e é, em conseqüência, predominante. Nunca, em nenhuma parte, a forma é resultado adquirido, acabamento, remate, fim conclusão. Há que concebê-la como gênese, como movimento, seu ser é o devir, e a forma como aparência não é mais do que uma maligna aparição, um fantasma perigoso. Boa é, portanto, a forma como movimento, como fazer; boa é a forma em ação. Má é a forma como inércia fechada, como detenção terminal. Má é a forma da qual alguém se sente satisfeito como de um dever cumprido. A forma é fim, morte. A formação é Vida. Isto se revelou por ocasião do crescimento de uma obra muito primitiva. O posterior desenvolvimento do organismo nos permite fazer uma segunda comprovação: como o trajeto criador penetrava em um caminho mais amplo, nos demos conta do inconveniente de um itinerário demasiadamente uniforme. Como se prevenir de um andar tedioso quando o caminho é o fundamental da obra? Faz-se necessário, logo, que o caminho ganhe em complexidade, se ramifique de maneira excitante, suba e desça, se extravie, se torne preciso ou embaraçado, se amplie ou reduza, se acelere ou se entorpeça. Trata-se com isso de vigiar o porque as diversas seções do itinerário se acomodam entre si a fim de formarem uma coesão; em outros termos, para que sempre se possa abarcar com o olhar toda a sua extensão como um organismo individual. Mas a coesão da obra, com a mediação da identidade do trabalho e do processo de sua elaboração (a obra em sua história), constitui-se durante o caminho, em virtude de proporções elementares que ligam as partes entre si e ao conjunto. Todo trabalho é a relação do particular com o geral.2V- Aqui, a obra que surge (bipartida). Lá, a obra que é. Pensar, portanto, antes que na forma (“natureza morta”), na formação. Manter-se com energia no caminho, relacionar-se sem descontinuidade com o primordial surgimento ideal. O produtivo, o essencial, é o caminho. O devir se mantém sobre o ser. A criação vive, em sua condição de gênese, sob o revestimento da obra. Isto é o que vêem todas as naturezas espirituais retrospectivamente. Prospectivamente, no futuro, só o vêem as naturezas criadoras. Todas as coisas são, finalmente, perecíveis. E o que resta do passado, o que resta da vida, é o espírito. O Espiritual na arte: o que na arte é artístico. A exigência do absoluto é a mesma em todas as direções em que atuemos. Capitulo 4 de KLEE, Paul. Theorie de l'art Moderne. Genéve: Gonthier, 1971. Tradução M. Dupra
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